O rap como voz diletante.
O rap mundialmente tem se tornado a grande manifestação artística daqueles que se levantam contra o estabelecido. Se vencem, é outra história. Desde Atlanta com Donald Glover/Childish Gambino que jogou no mainstream o rap mais atrelado à comunidade e aos problemas dos pretos e pobres — em um certo contraste ao que se viu durante o estouro de Eminem e a posterior onda do hip-hop mais asséptico e embranquecido que bebeu da ostentação da MTV por anos — que temos vistos que os grandes artistas mundiais se voltaram aos rappers e estes se tornaram a grande voz, por vezes dissonante e diletante, que se escuta.Em 2019 o Emicida lançou o álbum que mais me marcou desde
Sobrevivendo no Inferno dos Racionais. AmarElo. Difícil encontrar uma faixa do álbum que não valha a pena, mas, como o intuito é falar sobre o que é inescapável nesse anos de
Black Lives Matter, eu cito duas essenciais pra mim, AmarElo e Principia.A primeira, música que dá nome do álbum, é forte e contundente ao tocar na ferida da exploração, da falta de oportunidades, da depressão e da pobreza. Coloca dois nomes conhecidos de muitos e desconhecidos de outros tantos, Majur e Pablo Vittar, como centrais ao lado do
samplede Sujeito de Sorte de Belchior —
“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”.Contudo, o meu grande destaque é o verso que dá o tom da música inteira:>Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência É roubar o pouco de bom que vivi Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Achar que essas mazelas me definem, é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir Sim, a música fala sobre a volta por cima. Sobre revidar à vida os murros que você leva. Sobre o sentimento eterno de deslocamento que muitos daqueles que não estão inseridos no esquema de consumo da nossa sociedade sentem.[embed]https://www.youtube.com/watch?v=PTDgP3BDPIU[/embed] A segunda música, Participia, mantém a mesma identidade do álbum inteiro, abusando de forma sensata da pobreza como temática central e apoiando-se no amor, no otimismo e na empatia para nos dizer que tem saída, ainda que agora a névoa nos cubra.O grande verso da música é apagado, pra mim, pela poesia do Pastor Henrique Vieira sobre o amor, ainda assim o verso simples dá o tom do desespero contido que se encontra em quase todos os que lutam diariamente pela sobrevivência, afinal “Deus, por que a vida é tão amarga Na terra que é casa da cana de açúcar?” é sintomático de uma nação que não cuida dos seus.
Vejo a vida passar num instante Será tempo o bastante que tenho pra viver? Não sei, não posso saber Quem segura o dia de amanhã na mão? Não há quem possa acrescentar um milímetro a cada estação Então, será tudo em vão? Banal? Sem razão? Seria. Sim, seria se não fosse o amor O amor cuida com carinho, respira o outro, cria o elo No vínculo de todas as cores dizem que o amor é amarelo É certo na incerteza Socorro no meio da correnteza Tão simples como um grão de areia Confunde os poderosos a cada momento Amor é decisão, atitude Muito mais que sentimento Além de fogueira amanhecer O amor perdoa o imperdoável Resgata dignidade do ser É espiritual Tão carnal quanto angelical Não tá num dogma, ou preso numa religião É tão antigo quanto a eternidade Amor é espiritualidade Latente, potente, preto, poesia Um ombro na noite quieta Um colo para começar o dia Filho, abrace sua mãe Pai, perdoe seu filho Pais é reparação, fruto de paz Paz não se constrói com tiro Mas eu o miro, de frente, na minha fragilidade Eu não tenho a bolha da proteção Queria guardar tudo que amo Num castelo da minha imaginação Mas eu vejo a vida passar num instante Será tempo o bastante que tenho para viver? Eu não sei, eu não posso saber Mas enquanto houver amor Eu mudarei o curso da vida Farei um altar para comunhão Nele eu serei um com um Até ver o ubuntu da emancipação Porque eu descobri o segredo que me faz humano Já não está mais perdido o elo O amor é o segredo de tudo E eu pinto tudo em amarelo
Menção honrosa pra duas parcerias. Primeiro a do Criolo com o Milton Nascimento, ambos cantando que não existe amor em SP. A segunda nos lembrando dos sonhos da própria família na voz de Edi Rock e Seu Jorge.